segunda-feira, 26 de abril de 2010

Expresso para Varanasi - Parte 2

Rogério Monteiro



O calor devia rondar os 40 graus, e do teto dois velhos ventiladores espalhavam uma brisa morna que só fazia aumentar a sufocante sensação térmica da cabine. Dividíamos um banco lateral com um casal e um pentelho de uns quatro ou cinco anos, enfrentando os olhares curiosos dos vizinhos do banco da frente: um soldado gurka, um jovem com pinta de intelectual e dois sikhs com seus turbantes e (imaginava eu) facas afiadas escondidas sob as túnicas.
Estávamos no Expresso para Varanasi, que partia de Nova Dehli, capital da Índia, rumo à antiga Benares, uma das cidades mais antigas do mundo. Eu espumava de ódio. Tentara de todas as formas convencer aquela gente esquisita a deixar a cabine, mostrando-lhes o bilhete de primeira classe que me garantia uma cabine privativa, mas ninguém me deu bola nem muitas explicações. Limitavam-se a sorrir e balançar a cabeça com aquele olhar bovino típico dos indianos. Só o rapaz com pinta de intelectual se dignou responder, num inglês estropiado, que eu não me preocupasse, que todos iriam sair antes de escurecer. O problema é que eram 8 horas da manhã, e a perspectiva de passar o dia todo enfiado naquela cabine dois por três, amontoado com aquele povo debaixo de um calor senegalesco, me deixava profundamente irritado. Ainda mais porque eu havia pago por uma cabine de primeira classe, imaginando viajar num velho e bom trem inglês, daqueles que a gente vê nos filmes da Agatha Christie - cabine de lambris, banheiro privativo e carro-restaurante.

Na base do sorrisinho e do empurrão, consegui me acomodar ao lado da janela, pensando que assim pelo menos teria um pouco de ar fresco e poderia fazer umas fotos. Ledo engano. Assim que a veterana maria-fumaça apitou e iniciou penosamente sua marcha, uma nuvem de fumaça e fagulhas invadiu a janela, obrigando-me a fechá-la imediatamente. Entrei em desespero. O calor subia em ondas do piso de ferro, misturava-se com os odores de estofamentos encardidos e corpos suados para criar uma sucursal do inferno, ao que os indianos pareciam totalmente indiferentes.
Ao meu lado, minha companheira de viagem estava ainda mais indignada, pois preocupado com o erotismo exacerbado dos indianos eu a convencera a comprar um vestido longo e com decote bem fechado. Indiano não pode ver um tornozelo ou uma réstia de seio sem se emocionar, e eu não estava disposto a passar a viagem servindo de guarda-costas para a Rosângela.
Como resultado a pobre fritava dentro do tal vestido, rodelas de suor desenhando suas axilas e escorrendo pescoço abaixo. Ainda por cima era dia do seu aniversário e havíamos planejado comemorar com champagne e frutas, na “cabine Luxo” do expresso para Varanasi. Mesmo sem champanhe, tenho certeza de que aquele foi um aniversário inesquecível para ela.

A viagem começou, cortando as pradarias ressequidas no entorno de Dehli, e eu tentava me distrair olhando as choupanas miseráveis enfileiradas à beira dos trilhos, os montes de estrume de búfalo utilizado como combustível para o fogo e as pessoas acocoradas a fazer suas necessidades matinais entre as macegas, todos com sua latinha de água na mão, pois papel higiênico é uma raridade na Índia.
Foi só depois da terceira parada (o maldito trem parava de hora em hora em pequenos povoados pelo caminho) que idealizei um plano maquiavélico para mudar a sufocante situação da cabine. Aproveitando o sobe e desce da estação troquei de lugar e sentei-me ao lado da porta de correr que dava acesso ao corredor, e a partir daí sempre que o trem parava eu permita a saída de algum ocupante da cabine e depois trancava a porta com o pé, impedindo a entrada de novos candidatos à vaga.
Minha atitude provocou olhares de indignação dos outros indianos, mas ninguém ousou falar nada. Aos poucos a cabine foi esvaziando, até que no meio da tarde restamos apenas eu, a Rô e o gurka nepalês, que apesar da cara de poucos amigos demonstrou grande satisfação em ter um beliche só para ele e sua curiosa mala de madeira.
Por outro lado, minha posição de “porteiro” me trouxe outro dissabor: dois hijras se apaixonaram por meus olhos azuis e se instalaram no corredor defronte à janelinha, me convidando entre beijos e risadinhas nervosas para sair e falar com eles. Os hijras são outra curiosidade da peculiar cultura indiana. Travestis andróginos (muitos hermafroditas mesmo), espalham-se aos milhares pelo país e não são apenas respeitados como até reverenciados como portadores de boa sorte.
Nenhum casamento hindu que se preze deixa de contar com uma apresentação de dança hijra, prenúncio de felicidade no matrimônio. Pois quer saber? Pra mim não passavam de umas bichas-loucas a me encher o saco, e foi um alívio quando os outros indianos da cabine bateram boca com eles e os botaram pra correr.

Com minha tática de esvaziamento da cabine, a viagem tornou-se bem menos sofrida, e quando o calor baixou, no final da tarde, tornou-se quase agradável, não fosse a fome. Sem o carro-restaurante dos meus sonhos, a alimentação dos passageiros era provida por um indiano que percorria os corredores oferecendo uma lavagem que chamava de sopa, servida em cumbucas de barro que após a utilização eram sumariamente mergulhadas num balde de água imunda, antes de serem oferecidas ao novo cliente.
A outra alternativa era o chai, chá preto preparado com leite de abra e especiarias como cardamomo, cravo, canela e gengibre, oferecido por vendedores ambulantes sempre que o trem parava numa estação. Poderia até ser uma boa opção, não fosse a precariedade do serviço. O chá era armazenado em latões abertos e de aparência pouco confiável, e as pequenas xícaras de barro também só eram rapidamente mergulhadas numa água escura antes de servir a um novo cliente.
Nossa salvação acabou sendo a garrafa d’água e a sacola de frutas que Rô insistira em comprar antes da partida, apesar dos meus argumentos de que teríamos um sofisticado carro-restaurante a nosso dispor.

Quando a noite chegou a situação parecia sob controle. O gurka havia tomado posse de um dos beliches superiores e eu pedi a Rô que deitasse embaixo dele, para que eu pudesse vigiá-lo o tempo todo.
Para reafirmar minha condição de casca-grossa, saquei meu canivete de mola e passei a limpar acintosamente as unhas, pra deixar claro que não estava para brincadeiras. Na verdade o gurka não estava nem aí para nós, e logo estava roncando de barriga para cima, certamente sonhando com as neves do seu saudoso Himalaya.
Deixei-me ficar apreciando o balê das luzes a desfilar através da janela, e as cenas insólitas que se descortinavam em cada parada do trem: estações semi-desertas, grupos de “holymen” cobertos de cinzas a zanzar sem destino com seus fraldões e imensos tridentes, gente dormindo em cima de sacos, persistentes vendedores de chai.
Não sei a que horas dormi, sei apenas que quando acordei o gurka já estava de pé, totalmente vestido e bem penteado, e o trem apitava ao adentrar a estação de Varanasi. Acordei a Rô e descemos para a plataforma como sonâmbulos, e assim que cai na realidade não pude deixar de rir: minha companheira estava transformada na bruxa Meméia, os cabelos revirados e grudentos de suor, o vestido amarrotado e cheio de manchas de suor, o rosto cansado refletindo a noite mal dormida.
Entrei no primeiro tuc-tuc que se apresentou e mandei tocar para o melhor hotel da cidade. Afinal era aniversário da Rô, e depois daquela terrível experiência com os trens indianos ambos merecíamos uma boa ducha, uma taça de champagne gelado e uma cama bem macia para fazer amor.

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