domingo, 19 de julho de 2009

Semana de lesteira na Praia do Rosa ... Chuva, vento e solidão. Aproveito para postar um texto que escrevi muito tempo atrás, mas que fecha com esta semaninha barrenta de julho... Pode ser um pouco longo, como longo é o inverno por aqui, mas .....

UMA TARDE VIETNAMITA
Rogério Monteiro



Uma tarde vietnamita, daquelas em que a chuva cai do céu como se derramada por baldes divinos, e o vento sacode as casuarinas como se elas, pobres, tivessem culpa de terem nascido com aparência tão estéril. Tenho certeza de que foi numa tarde assim que os franceses perderam Waterloo, Verdun e Dien Bien Phu. Posso até imaginar os milhares de homens, ou o que deles restasse, com este mesmo barro viscoso a lhes agarrar as botas, subir pelas calças até macular rostos aflitos, olhos urgentes evitando as bombas, a visão de membros decepados, os gritos de dor. Posso jurar que sobre eles estaria pairando esta mesma bruma fria, envolvendo a realidade num fading surrealista, silêncio de coisa morta, rompido apenas pelo coaxar indiferente dos sapos. Aquela lama visguenta e gelada a cobrir canhões, corpos sem vida e carretas sem cavalos, era, tenho certeza, a mesma que hoje me impede de sair à rua, por medo de que do meio dela, como se das profundezas do inferno, mãos descarnadas venham agarrar-me as pernas e levar-me a sofrer o que ainda não sofri, comer o pão que o diabo amassou.
E pensar que esta chuva é a mesma que caía sobre as largas avenidas de Ho-Chi-Min City, quando ela ainda era chamada Saigon... A Paris do Oriente. A costumeira trovoada de final de tarde, néons coloridos a desenhar mandalas nas rodas dos riquixás, nos cromados dos carros, nas fisionomias tensas das pessoas. Eu certamente estaria acomodado numa mesa de canto, na cobertura do Hotel Rex, a apreciar a chuva escorrendo farta dos telhados, atormentando as sombrinhas coloridas que lá embaixo perseguiam seus caminhos. É bem provável que estivesse pensando nela, enquanto saboreava um cálice de porto e esperava, sem pressa, que me trouxessem o jantar. Posso quase sentir a indefinível sensação de plenitude que me invadiria então, aconchegado na poltrona estofada em veludo bordô, indiferente ao zunir úmido do vento nos telhados da cidade.
Sei que antes da segunda dose ela brotaria qual encantada visão através da porta emoldurada pela krakatoa branca, vestindo um dai amarelo, talvez rosa, ou ainda verde-água... Longos cabelos lisos e negros, despencando em cascata pelas costas morenas, delicados brincos de pérola, lábios rubros de batom. Pensando bem, um dai azul-marinho talvez lhe coubesse melhor, os cabelos presos à nuca com premeditada displicência para ressaltar os olhos amendoados e os longos cílios. Qualquer que fosse a opção, eu me levantaria como um perfeito cavalheiro, afastaria a cadeira para que sentasse e beijaria suavemente os lábios rubros e quentes, sentindo seu perfume enebriante enquanto estreitava a diminuta mão entre as minhas.
E ficaríamos lá por um bom tempo, tomando portos e daiquiris, falando bobagens e fumando, até a chuva parar e nos arriscarmos a um passeio de mãos dadas entre os leões de pedra da varanda. Lá embaixo, motocicletas, bicicletas e riquixás voltariam a ocupar os bulevares na sua faina diária, e eu a pegaria pela cinturinha fina de menina e a carregaria por entre risadas através das escadas atapetadas de vermelho, andares abaixo, até a rua. Enquanto o riquixá pedalasse sem esforço pela beira do rio, eu respiraria com prazer o cheiro único de Saigon, soltaria seus cabelos à brisa morna da noite e beijaria com estudada ternura o seu sorriso de reclame. Depois o quarto simples de hotel, um ventilador barulhento a marcar o tempo, um jogo de chá laqueado sobre a mesa. Seu corpo de menina, cor e consistência de lírio, me devoraria noite adentro num turbilhão de paixões, até eu adormecer exausto. No dia seguinte, despertado pelo estalar ritmado do ventilador, procuraria por ela e nada encontraria além do petit-dejeuner sobre a mesinha. Ao lado, um bilhetinho cheirando a almíscar, com as palavras “kamlong, mon amour”, envolvendo uma boca de batom.
Lá longe late um cachorro, a cadeira range, e de repente me descubro de volta, olhos parados na estrada que serpenteia morro acima, lustrosa de barro. O cigarro queimou esquecido no cinzeiro, a chuva molhou a vidraça e nem sei quanto tempo se passou, em mais uma tarde chuvosa de inverno no Rosa. Acendo outro cigarro, fecho a janela e arrasto as chinelas para o quarto, para assistir televisão. Diz que hoje tem especial do Roberto.

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